Ao procurar reproduzir objetos e práticas supostamente cristalizados no tempo e no espaço, acaba-se por reproduzir versões modificadas, no mais das vezes esquemáticas, estereotipadas e, sobretudo, inverossímeis – aos olhos dos produtores originais -, dos eventos culturais com os quais se pretende constituir o patrimônio de todos. Embora se procure ser fiel à tradição, ao passado, é impossível deixar de agregar novos significados e conotações ao que se tenta reconstruir.
Ao se produzir o espetáculo, cortam-se as raízes do que, na verdade, é festa, é expressão de vida e liberdade.
Vida que recusa identificar-se com as imagens que o espelho culto permite refletir e que grande maioria dos museus cultua.
São equivocadas as concepções de que o povo não tem cultura, que a cultura popular á a tradição da elite. São concepções etnocêntricas e autoritárias. Pensam a cultura como passível de cristalização, permanecendo imutável no tempo a despeito das mudanças que ocorrem na sociedade, ou, quando muito, que ela esteja em eterno desaparecimento.
A cultura é um processo dinâmico de transformações positivas que ocorrem, mesmo quando intencionalmente se visa congelar o tradicional para impedir a sua deterioração. É possível preservar os objetos, os gestos, as palavras, os movimentos, as características plásticas exteriores, mas não se consegue evitar a mudança de significado que ocorre no momento em que se altera o contexto em que os eventos culturais são produzidos. É preciso pensar a cultura no plural e no presente.
Significação de valores é da essência da cultura. Pó isso, o ponto de partida usual do trabalho do antropólogo é a observação direta de indivíduos se comportando face a outros indivíduos e em relação à natureza. A cultura constitui os diversos núcleos de identidade dos vários agrupamentos humanos, ao mesmo tempo em que os diferencia dos outros.
O ser humano realiza no dia-a-dia operações mentais de codificação e decodificação de mensagens que requerem o conhecimento desses significados implícitos nas ações e nos objetos, e de suas regras de manuseio. Um exemplo são as roupas com que as pessoas do sexo masculino cobrem o seu corpo. Elas constituem um grande número de afirmações simbólicas, sociologicamente significativas. No trabalho os gerentes, diretores e chefes usam paletó e gravata. Nas oficinas, linhas de montagem, serviços de limpeza e manutenção usam-se macacões. Os trajes possuem significação simbólica e carregam fragmentos de um código com o qual se constroem afirmações metafóricas a respeito das relações sociais vigentes.
Todas as ações humanas – sejam na esfera do trabalho, das relações conjugais, da produção econômica ou artísticas, do sexo, da religião, das formas de dominação e de solidariedade -, são constituídas segundo os códigos e as convenções simbólicas que denominamos cultura.
Em lugar de tomar os símbolos abstratamente, como se eles estivessem vagando no vazio, convém interpretá-los como produtos de homens reais que articulam, em considerações particulares, pontos de vistas a respeito de problemas colocados pela estrutura de sua sociedade.
Malinowiski contribuiu com a acepção de que os detalhes da cultura precisam ser vistos sempre em seu contexto e como partes inter-relacionadas. Foi demolida a concepção de cultura como colcha de retalhos – própria dos difusionistas e evolucionista. Estabeleceu-se, então, a tese de que a cultura é constituída por sistemas de significados que são parte integrante da ação social organizada. Recuperou-se a noção de que, mesmo em sociedades relativamente homogêneas, os sistemas culturais comportam incoerências. Permite-se, justamente, a articulação do desacordo nos termos de e com os elementos próprios a um mesmo e único sistema simbólico.
Há a tentativa, segundo Eunice Durhan, de criar a ilusão da homogeneidade sobre um corpo social que, na realidade, é diferenciado. A sociedade de classes, inerentemente diferenciada, produz mecanismos homogeneizadores que permitem criar uma ilusão de unidade e que é a condição de sua permanência.
A resistência e a participação ocorrem quando nos espaços alternativos, fragmentários e dispersos, como um teatro no fundo do quintal, embora conquistados a duras penas e com muito empenho, pequenos grupos de vizinhos, amigos e parentes, companheiros de trabalho, de igreja ou de partido desenvolvem as suas formas de expressão, a partir das suas maneiras de pensar, de agir, de fazer e, sobretudo, de organizar conjuntos de relações sociais capazes de tornar viáveis, política e materialmente, as suas atividades.
Nesse sentido, fazer teatro, música, poesia ou qualquer outra modalidade de arte é construir, com cacos e fragmentos, um espelho onde transparece, com suas roupagens identificadoras, particulares e concretas, o que é mais abstrato e geral em um ser humano, ou seja, a sua organização, que é condição e modo de sua participação na produção da sociedade.
Esse é o sentido mais profundo da cultura, popular ou outra, defende Arantes.