domingo, 20 de novembro de 2016

Lazer e Uso de Drogas: a partir do olhar sociológico Leisure and the Use of Drugs: a sociological view

Lazer e Uso de Drogas: a partir do olhar sociológico 
Leisure and the Use of Drugs: a s
Sociological view

Resumo:  Lazer, juventude e consumo de drogas: eis os elementos que compõem a temática central das reflexões aqui desenvolvidas, com o intuito de reiterar a necessidade do diálogo entre as áreas do conhecimento. O uso abusivo de drogas representa uma das questões de maior evidência na sociedade moderna, uma vez que o número de jovens consumidores aumenta na mesma proporção da diminuição da faixa etária. Assim, este artigo tem por objetivo salientar a necessidade de aproxima- ção entre algumas áreas do conhecimento, tendo em vista que as situa- ções de uso e suas consequências ocorrem no âmbito social. Trata-se de pesquisa com abordagem sociológica desenvolvida por meio de estudo bibliográfico, cujos resultados expõem o problema e a necessidade da interlocução entre áreas, considerando a urgência de um enfoque multidisciplinar visando à diminuição das consequências negativas que o uso abusivo promove, pois, além de complexo, o fenômeno em questão tem características biopsicossociais que exigem diferentes olhares. Por se tratar de um fenômeno complexo e multifatorial, resultante de um modo de funcionamento da própria sociedade na qual é verificado, o uso de drogas deve ser enfocado pelos diferentes campos do conhecimento e, para além da efetivação do necessário diálogo entre as áreas, deve estar desvencilhado de possíveis preconceitos e ranços moralistas comumente vinculados ao tema aqui proposto. Palavras-chave juventude; droga; lazer.


Introdução Este artigo visa provocar reflexões sobre um dos fenômenos sociais que, atualmente, mais consequências têm trazido a uma parcela da população jovem. Assim, propõe tratar da questão do uso abusivo de drogas e suas relações com o lazer a partir de uma abordagem sociológica. Tal esforço se dá pelo fato de os pesquisadores do presente trabalho entenderem o uso de drogas como uma questão permeada por aspectos biológicos e legais e que deve ser estudada também à luz da sociologia, uma vez que os diferentes usos das várias drogas e pelos mais diversos motivos dão-se no âmbito social. Nota-se que há escassez de diálogo entre as diversas áreas do conhecimento, assim como no interior das Ciências Sociais, e as consequentes contribuições que tais diálogos e abordagens poderiam oferecer às discussões de temas sociais são pouco encontradas, ocasionando estudos e compreensões a partir de uma única vertente. Alguns problemas sociais apresentam tal grau de complexidade que não podem ser contemplados por um único olhar, ou pela visão de uma única área do conhecimento, sob pena de ter seu entendimento limitado por concepções fragmentadas. Nesse sentido, torna-se necessária a união de diferentes olhares, de múltiplas compreensões, de enfoques trazidos pelos diversos campos do conhecimento. O lazer e o uso de drogas, temas cujas confluências são aqui trazidas à reflexão, exigem a composição de olhares de diferentes áreas do conhecimento, pois, mesmo quando debatidos separadamente, em geral são acompanhados de preconceitos e moralismos e, quando se apresentam reunidos para a discussão, a discriminação e os ran- ços moralistas fazem-se ainda mais intensificados. Dessa forma, este artigo pretende enfocar a intersecção dos temas visando chamar a atenção para a necessidade da comunicação entre diferentes áreas do conhecimento, pois, embora ambos os problemas sejam recorrentes na sociedade atual, as discussões e os estudos encontram-se ainda marcados por um número restrito de diálogos multi e interdisciplinares. Abordagens em Campos Específicos Há muito tempo, na área da saúde, a Medicina, além de ser a principal interlocutora das questões relacionadas ao uso e abuso de drogas, tem desenvolvido pesquisas cujo foco, na maioria das vezes, refere-se a estudos clínicos e epidemiológicos com ênfase nas terapias e nos medicamentos. Ou então, debruçam-se sobre os efeitos que o uso e abuso provocam no corpo humano, apontando as reações das drogas e seus impactos nas redes neurais, no sistema nervoso, além das consequências hepáticas, cardíacas, neurológicas, dentre outras. No campo jurídico, os estudos encontram-se relacionados às questões legais, mais preocupadas com a venda e distribuição das drogas ilícitas. Ocupam-se das ações promovidas pelo tráfico ou da elaboração de leis referentes à legalização e descriminalização, dentre outras questões que caminham, invariavelmente, na direção da repressão à distribui- ção e ao uso de drogas, especialmente as ilícitas. Mesmo quando outras áreas do conhecimento são trazidas à discussão, os discursos são conduzidos, geralmente, por profissionais da saúde, sem considerar que o uso de drogas se dá no âmbito social, e que os sujeitos devem ser tomados de forma contextualizada, histórica e socialmente. Ainda que alguns aspectos relativos ao uso de drogas sejam de ordem social, pois é no cotidiano que eles ocorrem, a escassez de abordagens interdisciplinares visando ao diálogo entre áreas do conhecimento e, consequentemente, maior intercâmbio entre elas restringe as possibilidades de efetivação de uma compreensão mais ampla do fenômeno. As abordagens de caráter interdisciplinar, embora ainda bastante escassas, são necessárias para que intervenções sejam efetivadas no sentido da diminuição das consequências que o problema promove tanto em termos individuais (físicos e emocionais nos usuários) como sociais (na famí- lia, no trabalho, na religião, na educação, no sistema de saúde, no trânsito, no lazer, etc.). Historicamente, as ciências apresentam-se recortadas por áreas de conhecimento que poucas trocas realizam entre si, consequências de resquícios da mentalidade positivista que persiste na atualidade. Há quase meio século Japiassu (1976) fazia referência ao fato, denominando-o de patologia geral do saber. Ao tecer a crítica sobre a compartimentarização do saber, o autor defende a necessidade de se fazer ciência de forma interdisciplinar e argumenta: “Encontramo-nos diante de uma alienação científica. Diagnosticar o mal é apenas o primeiro momento. O interdisciplinar se apresenta como o remédio mais adequado à cancerização ou à patologia geral do saber” (JAPIASSU, 1976, p. 31). A interdisciplinaridade representa o caminho possível para que cada especialização transcenda seu espaço, estabelecendo as trocas favoráveis ao avanço do conhecimento. Assim, no prefácio da obra de Japiassu, é Gusdorf (1976, p. 26) quem destaca: “A exigência interdisciplinar impõe a cada especialista que transcenda sua pró- pria especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para acolher as contribuições de outras disciplinas”. O encontro entre especialistas não deve se resumir à troca de dados, mas promover ricas oportunidades de intercâmbios entre as áreas, segundo o autor: [...] esses encontros serão considerados o lugar e a ocasião em que se verificam verdadeiras trocas de informações e de críticas, em que explodem as ‘ilhas’ epistemológicas mantidas pela compartimentarização das instituições ainda às voltas com as ‘fatias do saber’, em que as comunicações entre especialistas reduzem os obstáculos ao enriquecimento recíproco, em que os conflitos, o espírito de concorrência e de prosperidade epistemológica entre os pesquisadores devem ceder o lugar ao trabalho em comum em busca de interação [...] (GUSDORF, 1976, p. 26). Não se trata, no entanto, da perda da especificidade de cada área, e sim das possíveis colaborações que cada uma possa ofertar às demais a partir do diálogo, da troca e das possíveis interferências que o saber de um determinado campo do conhecimento possa apresentar como contribuição a outro. Comungando do mesmo pensamento, Elias e Dunning (1992, p. 49) ressaltam: Existem especialistas de estudos da sociedade, especialistas do estudo da personalidade e muitos outros, cada grupo a trabalhar como se estivesse em sua torre de marfim. Dentro dos seus limites, cada grupo produz, sem dúvida, importantes resultados de pesquisas, mas existem vários problemas que não podem ser explorados dentro das fronteiras de uma única especialidade. A afirmação de Elias e Dunning (1992) clama por necessidades semelhantes àquelas levantadas por Japiassu (1976) e visa evidenciar o imperativo das trocas entre as áreas do conhecimento tanto no âmbito interno de uma mesma ciência quanto no externo, culminando nas abordagens em que emerge a interdisciplinaridade. Também fazendo referência às abordagens interdisciplinares e dando ênfase à intensidade das trocas entre os especialistas, Marcellino (1988, p. 107) sugere “O interdisciplinar exige muito mais do que a soma de conhecimentos; o que se busca é superar os limites de cada disciplina”. Marcellino (1988) propõe as possibilidades do diálogo no conhecimento e afirma que a colaboração entre os setores heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações e reciprocidade nos intercâmbios, enriquecendo todo o processo. Embora passados mais de trinta anos das denúncias do sociólogo, e supondo que elas já tivessem sido mencionadas anteriormente, ainda não são verificadas mudanças efetivas no universo da ciência, especialmente no que concerne aos estudos sobre o uso de drogas e o lazer, temas propostos nesta reflexão.
O Uso de Drogas na Sociedade Sabe-se ainda muito pouco a respeito da influência dos distintos fatores que incidem sobre o uso de drogas, mas é certo que, de modo geral, o uso tem se dado, ao menos no início, preferencialmente nas situações de lazer, de vivência do ócio, do tempo disponível das pessoas. Nesse sentido, Henriques (2002) ressalta que novas drogas associadas a novas práticas de consumo obrigam que questões antigas sejam recolocadas de uma nova forma, sendo conside- 78 Impulso, Piracicaba • 20(49), 75-84, jan.-jun. 2010 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 radas à luz da complexidade das sociedades contemporâneas. Para Henriques (2002), ao longo dos tempos tem sido corrente a utilização de várias substâncias em diferentes culturas, sempre com o poder de aliviar o sofrimento e de modificar o humor, porém os consumos estão generalizando-se e intensificando-se. Em tempos de globalização e de consumismo, também os consumos de drogas encontram-se massificados e diversificados. Com relação às bebidas, Adorno (2008) faz referência à presença do álcool em situações de lazer, pautado em estudos de Alain Ehrenberg (1995), sociólogo francês que denominou de “lubrificantes da sociabilidade popular” as bebidas, mostrando que o uso delas faz parte das situações de lazer e recreação de diferentes camadas sociais. Ainda assim, não é prudente delegar unicamente ao campo do lazer a responsabilidade pelos usos que dele se faz. O olhar deve se estender a todas as vertentes sociais, considerando também suas confluências, para então supor a possibilidade de algum entendimento do fenômeno aqui proposto à análise, sem perder de vista que tais respostas serão parciais, considerando-se a complexidade que o fenômeno encerra. Os fatores apontados como responsáveis pelo uso de drogas na sociedade moderna são tão diversos quanto contrários. Os problemas são antagônicos e o uso de drogas é verificado nas distintas camadas sociais, assim como os usos das diferentes drogas. Com o objetivo de determinar a prevalência do uso pesado de drogas por estudantes de primeiro e segundo graus de uma cidade de médio porte no interior do Estado de São Paulo, a partir de uma amostra de escolas públicas e particulares, pela qual foram identificados fatores demográficos, psicológicos e socioculturais associados, Soldera et al. (2004) notaram que o uso pesado de drogas lícitas e ilícitas apresentou-se assim distribuído em termos percentuais: álcool (11,9%), tabaco (11,7%), maconha (4,4%), solventes (1,8%), cocaína (1,4%), medicamentos (1,1%), ecstasy (0,7%). A referida pesquisa aponta ainda que o uso pesado foi maior entre os estudantes da escola pú- blica central do período noturno. Esses estudantes trabalhavam, pertenciam aos níveis socioeconô- micos A e B e sua educação religiosa na infância foi pouco intensa. A maior disponibilidade de dinheiro e os padrões específicos de socialização foram identificados como fatores associados ao uso pesado de drogas entre os estudantes analisados. Com objetivo de verificar possíveis associa- ções entre o nível socioeconômico, o estilo de vida e o consumo de drogas, a partir de estudos desenvolvidos por Silva et al. (2006), foram apresentadas as seguintes relações sobre o nível econômico: a renda familiar mensal mostrou-se relacionada ao uso de álcool e drogas ilícitas. Os alunos com renda familiar superior a quarenta salários-mínimos mensais apresentaram o maior uso para o álcool (92,2%) e drogas ilícitas (39,2%). Em contrapartida, os alunos cuja renda familiar era inferior a dez salários-mínimos mensais obtiveram o menor uso de álcool (75,2%) e de drogas ilícitas (16,7%). O consumo de tabaco e de medicamentos com potencial de abuso não apresentou relação com a renda familiar mensal. Portanto, observa-se que não há um crité- rio único, não há um padrão ou uma regra que determine a camada social na qual será detectado o maior uso. Existem, sim, inúmeras dúvidas e a constatação do crescente número de usuários a cada novo estudo apresentado. Observa-se também que algumas drogas são usadas por públicos específicos, com fins e situações igualmente específicos (BUCHER, 1992). No entanto, a compreensão simplista e ingênua comumente verificada é, em parte, resultante da visão fragmentada acerca do problema, reforçada pelo fato de ele não ser situado historicamente com o propósito de entender o uso de droga em sua dimensão dialética, isto é, influenciando ao mesmo tempo em que também recebe a influência do modo de funcionamento da sociedade na qual esse uso é verificado. O uso abusivo de drogas lícitas ou ilícitas representa um problema de ordem biopsicossocial e, deve ser abordado considerando-se as dimensões que o compõem, quais sejam, o indivíduo, a droga e o contexto social, segundo Bucher e Oliveira (1994) e MacRae e Vidal(2006).Desse modo, refletir sobre estudos que abordem o uso de drogas ou o lazer dos indiví- duos os quais não sejam simultaneamente estudos 79 Impulso, Piracicaba • 20(49), 75-84, jan.-jun. 2010 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 da sociedade são análises parciais e desprovidas de contexto. MacRae e Vidal (2006) tecem uma crítica a estudos que privilegiam abordagens epidemiológicas e denunciam que as pesquisas têm se desviado dos fatores socioculturais que plasmam o uso de drogas, buscando, por meio do modelo de causalidade biomédico, relações entre o agente patogênico (droga) e o organismo enfermo (usuário de droga). Sob esse aspecto, constata-se ainda a forte influência da área médica sobre questões que ultrapassam os limites do corpo biológico para adentrarem o corpo sociológico e todas as interferências vividas por este. A visão fragmentada da ciência dificulta a possibilidade de um olhar mais abrangente, especialmente sobre problemas de cunho social, quando o olhar não tem um alcance global para analisar fenômenos cujas características são multifatoriais. Ainda que o problema na atualidade venha sendo discutido de modo mais abrangente, MacRae e Vidal (2006, p. 647) comentam: Assim, embora tenha se tornado muito difundida e bem aceita a idéia de que a questão das drogas só pode ser apreendida em toda sua complexidade por meio de uma abordagem biopsicossocial, as ciências da saúde detêm uma quase hegemonia sobre o discurso considerado legítimo e competente para esse tema. Cabe, pois, estabelecer algumas aproxima- ções entre os temas com o objetivo de contribuir para que novas reflexões e debates ocorram, visando promover o maior diálogo entre as áreas e provocando futuras pesquisas a partir de diferentes olhares que compõem o universo da ciência tanto quanto dos fenômenos por ela estudados. Lazer e Uso de Drogas Desde a Pré-História, diferentes substâncias psicoativas vêm sendo usadas para um grande leque de finalidades que se estendem do seu emprego lúdico, com fins estritamente prazerosos até o desencadeamento de estados de êxtase místico/ religioso, segundo MacRae (2009). Uma pesquisa de Martins (2006) sobre a relação entre as drogas e os jovens estudantes de uma cidade de médio porte, no interior do Estado de São Paulo, detectou o uso de álcool em duas situações: nos fins de semana e em eventos esporádicos, classificados como festas populares, festas com amigos, bar ou boate e festas em família. Pode-se afirmar que são todas ocupações de lazer, uma vez que correspondem a situações de livre adesão e realizadas num tempo disponível dos indivíduos. Scivoletto e Morishisa (2001) também se referem ao uso de drogas de modo recreativo, ressaltando que este se dá em situações de lazer. Silva et al. (2006) desenvolveram estudos com o objetivo de verificar o quanto o estilo de vida e a situação socioeconômica estão relacionados ao uso de álcool, tabaco, medicamentos e drogas ilícitas por parte de universitários da área de ciências biológicas de uma universidade pública do Estado de São Paulo. Os resultados do estudo apontam uma relação entre o uso de drogas ilícitas e número de horas livres por dia de fim de semana, detectando-se maior satisfação quanto à frequência do lazer entre os alunos que utilizavam drogas ilícitas Tal diferença na satisfação quanto ao número de horas livres não foi percebida entre usuários e não usuários de álcool, tabaco e medicamentos com potencial de abuso. Madu et al. (2003) encontraram também uma correlação entre o aumento do uso de tabaco e de drogas quando os alunos estão mais cansados, estressados, deprimidos ou em festas. O uso de álcool foi maior quando os alunos estavam em festas ou durante os fins de semana e horários livres. Essa observação condiz com os resultados obtidos no presente trabalho, mostrando que os usuários dessas substâncias estão mais fora de casa e, consequentemente, mais expostos ao uso. Os fenômenos sociais carregam em si diferentes aspectos que o compõem, perfazendo sua totalidade. Nesse sentido, para que eles possam ser compreendidos, todas as nuanças devem ser consideradas e analisadas. Para Leme (1988, p. 98), Uma vez que a realidade social se compõe de fenômenos que se relacionam 80 Impulso, Piracicaba • 20(49), 75-84, jan.-jun. 2010 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 entre si, é importante destacar que essas relações não se dão livremente, ao acaso, mas, sim, obedecem sempre a determinações históricas, ou seja, são configuradas num espaço tempo determinado que lhes garante a especificidade. As especificidades são aquelas presentes tanto na sociedade quanto no fenômeno em si. Não basta o olhar acusatório para o uso de drogas ou para determinados comportamentos dele advindos. Há de se considerar o contexto social no qual ele se dá, além de perceber o indivíduo historicamente situado. Nenhuma questão social é passível de ser compreendida isoladamente. O uso de drogas, assim como as manifestações de lazer do público jovem, deve ser entendido a partir do todo, sem incorrer em fragmentações que reforcem olhares recortados que pouco contribuem para a compreensão dos problemas e das possíveis proposições, seja em termos de políticas públicas de lazer, de prevenção, ou outras formas de intervenção. O aumento do número de usuários de drogas lícitas e ilícitas e as consequências sociais, diretas e indiretas, provocadas pelo uso abusivo representam problemas que não podem ser tratados dentro das fronteiras da área médica ou legal ou de qualquer outra área do conhecimento que se proponha a fazê-lo de forma isolada, ou que desconsidere o contexto sociocultural. Tampouco a vivência do lazer e os modos de ocupação do tempo disponível podem ser responsabilizados, de modo descontextualizado e independente dos demais aspectos da vida em sociedade, pelo uso que dele se faz. Marcellino (2008, p. 12) defende que: O entendimento do lazer de modo isolado, sem considerar as mútuas influ- ências que podem ocorrer, e certamente ocorrem, com as várias esferas da vida social, tem provocado uma série de equívocos [...] Quanto mais complexa se torna a sociedade, maiores são as necessidades de inter-relações entre os vários componentes da vida social para o seu entendimento. O sociólogo destaca ainda que: A relação que se estabelece entre lazer e sociedade é dialética, ou seja, a mesma sociedade que o gerou, e exerce influências sobre o seu desenvolvimento também pode ser por ele questionada, na vivência dos seus valores. (MARCELLINO, 2008, p. 12). É importante ressaltar ainda que o lazer, de acordo com o autor, tem duplo aspecto educativo, sendo veículo de educação e objeto de educação: Tratando-se do lazer como veículo de educação, é necessário considerar suas potencialidades para o desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos. Tanto cumprindo objetivos consumatórios como para o relaxamento e prazer propiciados pela prática ou pela contemplação [...] Por outro lado, para o desenvolvimento de atividades no ‘tempo disponível’, de atividades de lazer, quer no plano da produção, quer no plano do consumo não conformista e crítico, é necessário aprendizado (MARCELLINO, 2008, p. 12). Ainda que grande parte do uso de drogas se dê em situações de lazer, conforme explicitado anteriormente, e que o lazer possa desempenhar seu duplo aspecto educativo, como veículo e objeto de educação, há de se considerar que o modo de vivência desse tempo tem relação direta com as demais esferas da vida humana. Desse modo, as funções do lazer só podem ser compreendidas se forem consideradas parte constituinte de um todo indissociável, que se refere à vida em sociedade. Portanto, não se trata de colocar o lazer no banco dos réus, como se fosse a manifestação social responsável pelo uso de drogas, mas de buscar compreender as relações aqui apresentadas de modo mais abrangente, uma vez que vinculadas às demais esferas da vida. Lazer e Prazer A complexidade que envolve a questão do 81 Impulso, Piracicaba • 20(49), 75-84, jan.-jun. 2010 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 uso de drogas foi ressaltada por Bucher (1992), ao advertir que, em muitas abordagens a respeito do consumo, o aspecto do prazer proporcionado pelo uso não era considerado, como se o prazer fosse secundário à vida humana. No entanto, há de se admitir que a desconsideração do prazer não é restrita às questões e aos estudos sobre drogas. É tema intrínseco das discussões da sociologia que abordam o lazer que, por também estar relacionado a um tempo e espaço de manifestação do prazer, não recebe o mesmo tratamento de outros fenômenos que compõem a dinâmica social. Assim, sobre os tabus que acompanham as discussões que envolvem a temática do prazer, Elias e Dunning (1992, p. 123) afirmam: Dentro do contexto de uma tradição como a nossa, as discussões sobre problemas de prazer tendem a ser desequilibradas: a propensão para banir o lazer como tema de conversas sérias ou de investigações correspondente à tendência para vincar excessivamente a sua relevância, o que é característico do esforço que é necessário fazer quando alguém se aproxima de uma zona de tabus. Os autores ressaltam que, apesar da importância social de alguns fenômenos, por exemplo, os desportos (pode-se estender tal projeção também ao lazer), seus estudos foram desprezados como áreas de investigação da sociologia e argumentam explicações possíveis: [...] a sociologia orientou-se para o campo restrito dos aspectos ‘sério’ e ‘racional’ da vida, o que teve como efeito que o divertimento, o prazer, o jogo, as emoções e as tendências ‘irracionais’ e ‘inconscientes’ do homem e da mulher tivessem merecido escassa atenção no âmbito da teoria e da investigação sociológicas (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 16). Entretanto, as funções do lazer só podem ser compreendidas se forem consideradas como parte constituinte de um todo indissociável, que se refere à vida humana em sociedade. Para Bosi (1978), a indissociabilidade das relações entre trabalho e lazer finda por provocar vivências alienadas. Argumenta a autora: “[...] se no trabalho e no lazer corre o mesmo sangue social, é de se esperar que a alienação de um gere a evasão e processos compensatórios de outro” (BOSI, 1978, p.76). Bosi (1978) observa a transferência de situações alienantes vivenciadas em um domínio da vida, provocando reflexos em demais setores, o que permite afirmar que, na atual sociedade capitalista, o modelo de trabalho alienado gera, consequentemente, a possibilidade de vivência de lazeres alienados. Desse modo, para se compreender o lazer e os modos de ocupação do tempo disponível, é prudente buscar também a compreensão de outras esferas da vida humana que não somente o lazer ou trabalho, por exemplo, a família e a religião. O mesmo critério pode ser empregado em estudos que busquem a compreensão do uso de drogas quer em situações de lazer ou não, porém considerando, principalmente, que tal uso se dá em situações de convívio social, também se devendo buscar compreender as demais esferas da vida do homem. Elias e Dunning (1992, p. 21) mencionam os modos fragmentados de se olhar para o homem e para a sociedade e desenvolvem sua teoria visando resolver essa dicotomia cuja tendência está em: “reduzir os estudos das pessoas e das sociedades a um ou a outro plano, num conjunto de sobreposições dicotômicas”. Homem e sociedade fazem parte de uma natureza que, embora não se constitua num tecido homogêneo, representa um todo diferenciado que se inter-relaciona. Consideram ainda os sociólogos mencionados que, para se estudar questões do lazer, não basta apenas abandonar as limitações impostas pela dicotomia trabalho-lazer, afirmando que os problemas relacionados ao tempo disponível só podem ser entendidos se os seres humanos forem estudados de modo global. Eles ressaltam a importância de se tomar o lazer sob um aspecto bastante abrangente e des- 82 Impulso, Piracicaba • 20(49), 75-84, jan.-jun. 2010 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767 tacam que: “[...] sua principal função parece ser a de ativar formas de excitação agradáveis, estas não podem ser devidamente compreendidas por meio de uma abordagem sociológica que ignore as suas dimensões psicológicas e fisiológicas” (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 34). Os autores defendem que o controle das sociedades industrializadas coincide com o domínio das expressões das emoções em público, pois nas sociedades mais avançadas são menos frequentes as situações críticas sérias que originam comportamentos de excitação nos indivíduos, uma vez que aumentou o controle social e o autodomínio da excitação exagerada. A agradável excitação-prazer que as pessoas procuram nas suas horas de lazer, representa assim, ao mesmo tempo, o complemento e a antítese da tendência habitual perante a banalidade das valências emocionais que se deparam nas premeditadas rotinas ‘racionais’ da vida [...] (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 115). Quando se comparam as sociedades menos desenvolvidas com as sociedades industriais, observa-se que nestas últimas são menos frequentes as situações que permitem aos indivíduos comportamentos de excitação. Estabeleceu-se aos poucos nessas sociedades uma necessidade de autodomínio das manifestações exageradas, tendo por consequência a necessidade de outras formas de expressão. Nesse sentido, os comportamentos promovidos como resultado do uso de drogas podem representar uma das situações de expressão de comportamentos de excitação nos indivíduos, uma vez que, dentre os efeitos do uso, é característica a ausência do autodomínio. Em estudos que relacionaram o comportamento sexual de jovens estudantes com o uso de drogas, Scivoletto et al. (1999) apontam a maconha e o álcool como as substâncias que apresentaram maior associação com comportamento sexual de risco. Ainda acerca da ausência do autodomínio, Minayo e Deslandes (1998) mostram a relação entre o uso de drogas e a violência, considerando, no entanto, a complexidade que a articulação entre os temas requer. A violência social tem raízes em fatores distintos e polissêmicos e, portanto, exige, tanto no âmbito da ação quanto no da reflexão, que o estudo da temática seja respaldado pelo debate entre cientistas sociais e cientistas naturais, entre organizações não governamentais e representantes das secretarias e coordenações de programas de saúde e de outros setores da ação pública, ultrapassando preceitos normativistas da conduta dos indivíduos e preconceitos sociais. As autoras reforçam a necessidade de ações conjuntas, embasadas por compreensões abrangentes que tomem o homem integralmente e dentro de um contexto sócio-histórico, que possam contribuir para as mudanças necessárias. 

Dados dos autores:  Liana Abrão Romera Professora doutora do curso de Educação Física da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Membro do Grupo de Pesquisa em Lazer (GPL) Nelson Carvalho Marcellino Professor doutor do Programa de Mestrado em Educação Física da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) Líder do Grupo de Pesquisa em Lazer (GPL) Recebido: 25/3/10 Aprovado: 25/8/10.


Joseph Alois Schumpeter


Joseph Alois Schumpeter (Triesch8 de fevereiro de 1883 — TaconicConnecticut8 de janeiro de 1950) foi um economista e cientista político austríaco. É considerado um dos mais importantes economistas da primeira metade do século XX, e foi um dos primeiros a considerar as inovações tecnológicas como motor do desenvolvimento capitalista. Além disso, marcou profundamente a história da reflexão política com sua teoria democrática a qual redefiniu o sentido de democracia, tida como uma simples maneira de gerar uma minoria governante legítima, ou seja, uma definição procedimental que passa a ser a base de diversas concepções posteriores.

Contribuições teóricas


Apesar de Schumpeter ter encorajado alguns jovens economistas matemáticos e ter sido presidente-fundador da Econometric Society (1933), ele não foi um matemático, mas um economista que se batia entusiasticamente pela integração de sua disciplina com a Sociologia para o melhor entendimento de suas teorias econômicas. Presentemente sabe-se que as ideias de Schumpeter sobre os ciclos econômicos e o desenvolvimento não cabiam no quadro matemático de sua época. Tais teorias requeriam uma linguagem de sistemas dinâmicos não lineares para serem parcialmente formalizadas.
Sua teoria do ciclo econômico representou a chegada fundamental para a ciência econômica contemporânea. A razão, segundo o autor, para que a economia saia de um estado de equilíbrio e entre numa disparada está no surgimento de alguma inovação, do ponto de vista econômico, que altere consideravelmente as condições prévias de equilíbrio.
Exemplos de inovações que alteram o estado de equilíbrio são: a introdução de novo bem no mercado, a descoberta de novo método de produção ou de comercialização de mercadorias, a conquista de novas fontes de matérias-primas, ou mesmo a alteração da estrutura de mercado vigente, como a quebra de um monopólio, por exemplo. A introdução de uma inovação no sistema econômico é chamada por Schumpeter de “ato empreendedor”, realizada pelo “empresário empreendedor”, visando à obtenção de lucro, que, segundo o autor, é o motor de toda a atividade empreendedora. Quando fala de lucro, Schumpeter não se refere à remuneração usual do capital investido, mas ao “lucro extraordinário”, isto é, o lucro acima da média do mercado, que engendraria novos investimentos e a transferência de capitais entre os diferentes setores da economia.
Ainda de acordo com o economista, para que uma inovação seja realizada, é necessário que três condições sejam cumpridas:
  • que, em determinado período, existam novas e mais vantajosas possibilidades do ponto de vista econômico privado, na indústria ou num ramo da indústria;
  • que haja acesso limitado a tais possibilidades, seja em razão das qualificações pessoais necessárias, seja por causa de circunstâncias exteriores;
  • que a situação econômica permita o cálculo de custos e um planejamento razoavelmente confiável, isto é, que haja uma situação de equilíbrio econômico.

Conheça as correntes presentes no debate sobre a liberação ou não de substâncias ilícitas



A reportagem de VEJA 2391, 17 de setembro de 2014"O Canabidiol não é droga" destaca a liberação do uso do derivado da maconha para uso medicinal. 
Diversos países têm autorizado a venda de algumas drogas tanto para fins medicinais quanto recreativos. 
Mas nem sempre foi assim. 
Durante a história - sobretudo no século 20 - a proibição da venda de drogas e os tratamentos dados aos usuários foram alvo de diferentes visões e políticas.
O tema pode ser discutido com os alunos de Ensino Médio em diversas disciplinas e conteúdos. 
Nas aulas de Sociologia e História, por exemplo, é possível tratar do histórico do proibicionismo e do quanto as alternativas de combate ao problema respeitam ou não os direitos humanos.
Na apresentação abaixo, listamos algumas diferentes abordagens sobre o tema. 
Abaixo, também explicamos algumas das correntes e listamos materiais e casos que podem ser discutidos com a garotada.
Até o início do século 20, não havia regulamentações que abordassem a questão das drogas, ainda que haja uma citação ao comércio de "substâncias tóxicas" em As Ordenações Filipinas, código legal português de 1603. 
Apesar disso, o consumo de substâncias como o álcool e o ópio nunca foi bem-visto pela sociedade.

Drogas além da biologia: a perspectiva sociológica Alba Zaluar Prof. Titular de Antropologia UERJ

 1 Vou falar nesse texto de uma sociologia não apenas do uso de drogas, mas do uso de drogas no contexto político institucional que proíbe ou criminaliza o uso e o comércio de algumas substâncias psicoativas, mas não de outras. Isso quer dizer que não vou abordar questões relativas nem aos efeitos de cada substância psicoativa sobre o cérebro humano, nem sobre a personalidade (ou o distúrbio de personalidade) do usuário que são tratados respectivamente pela neurobiologia e pela psiquiatria. Embora a distinção entre uso e adição, assim como a diferença entre adição e dependência física sejam fundamentais para reconstituirmos as relações sociais entre usuários ou entre eles e as substâncias que usam, também não vou me estender sobre tais distinções. Vou me deter, isto sim, no contexto social do uso e nas dinâmicas sociais que podem nos ajudar a entender porque o uso tem aumentado continuamente na população, apesar de todas as medidas repressivas, sempre na perspectiva de entender porque uns e não todos se tornam usuários, porque há tantas formas e graus de se relacionar com a droga, porque há tantas diferenças entre locais e porque as mudanças vão se espalhando na população, especialmente a jovem. Para isso, a abordagem não pode ser nem epidemiológica nem a sindêmica, pois em Sociologia e Antropologia não se trabalha com as conexões lineares de causa-efeito ou com os fatores de risco, nem muito menos com os efeitos em termos de doenças físicas, mas com a sinergia entre múltiplas dimensões, entre múltiplos fatos sociais interconectados para produzir consequências, na perspectiva da complexidade. Certamente, para a Sociologia contemporânea, a idéia de uma relação causal linear está em desuso devido à sinergia entre tantos elementos que vão compondo os contextos sociais que se pretende entender. Embora a dimensão objetiva esteja sempre presente na complexidade, os aspectos subjetivos são parte da nossa investigação com os sujeitos da nossa pesquisa. Interessa-nos, portanto, os múltiplos significados que os atores sociais emprestam às substâncias que usam, aos riscos que correm e às relações que estabelecem entre si nas diferenças cenas ou situações de uso. 
Na 2 perspectiva de uma démarche reflexiva ou de um diálogo entre o cientista social e as pessoas que ele estuda, procura-se entender a dinâmica das situações sociais, em contínuo processo, com todas as indicações, rastros, contradições e paradoxos que vão aparecendo ao longo do tempo com o maior número possível de atores. As perspectivas antropológica e sociológica qualitativas optam pelo aprofundamento, mas perdem precisão, considerando que nem tudo pode ser medido matematicamente, mas quase tudo pode ser entendido nos seus múltiplos aspectos e dimensões. Apontam os conflitos, a diversidade, as anomalias, os dilemas, as mudanças e os paradoxos nos contextos socioeconômicos, culturais, político-institucionais. Não comprovam matematicamente, mas sugerem caminhos que desafiam os que tentam medir o que parece ser incomensurável, como o sofrimento, o medo, o abandono, a amizade, o rancor, a confiança, a dor. As questões sempre atendidas nos estudos sociológicos da droga referemse a: 
1. Quais são os usos histórico-culturais do uso das substâncias em foco no local em questão? 
2. Quais são os padrões presentes do uso e seus efeitos sobre os consumidores?
 3. Como os consumidores se iniciam no uso dessas substâncias e como se relacionam entre si? 
4. Como os grupos sociais a que pertence o consumidor (família, escola, vizinhança) reagem diante do uso e como isso o afeta? 
5. Quais são os círculos viciosos provocados pela marginalização dos usuários, pelo aumento da insegurança via aumento da criminalidade, pelo aumento dos gastos públicos com a repressão que devem ser superados pelo bem da política pública?
Há um consenso entre os estudiosos do assunto de que as substâncias psicoativas fazem parte das sociedades humanas desde tempos imemoriais, mas o lugar que essas substâncias ocupam na vida social, a forma de iniciação e o uso contínuo delas variam de sociedade para sociedade em diferentes tempos 3 históricos.
Igualmente variável é o lugar que os usuários de tais substâncias ocupam na sociedade parcial da qual fazem parte. Exigir ou procurar uma sociedade livre de drogas é ilusório e inútil. 
É justamente a comparação entre sociedades e diferentes tempos históricos que nos permite compreender a dinâmica que pode ou não criar, que pode ou não aumentar o sofrimento do usuário, as situações de conflito e incompreensão entre eles e seus familiares, parentes, vizinhos, professores, cuidadores. 
São essas relações variáveis no tempo e no espaço que vão nos fazer entender porque surgem economias transgressivas que, embora enriqueçam fornecedores e seus associados, além de alimentar um caríssimo aparato de repressão, acabam por provocar efeitos desagregadores na sociedade. 
Tais efeitos se devem ao impacto na ocupação do espaço público pelo comércio e uso das drogas ilegais; ao crescimento das atividades criminais que passam a ser altamente rentáveis em uma atividade econômica permanente; ao aumento insofismável (seja imaginário, seja real) do sentimento de insegurança da população; ao acúmulo de problemas na saúde pública pela sinergia do uso de drogas abusivo com comportamento de risco, tais como sexo sem segurança, compartilhamento de seringas que facilitam a contaminação de doenças infectocontagiosas; à marginalização do usuário e o abandono progressivo dos demais laços sociais para se ater apenas na convivência com os outros usuários. 
Na literatura internacional há indícios de que, apesar da constante atração que as experiências com a consciência alterada, a transgressão e a importância de ser aceito pelo grupo de pares seja uma característica do jovem, as culturas tratam essas tendências juvenis de diferentes maneiras. 
As culturas ditas molhadas, que socializam o jovem no seu uso controlado e não arriscado dentro do espaço familiar ou ritual, ou aquelas em que o jovem usuário continua acolhido nas suas redes sociais da qual fazem parte adultos respeitados, podem vir a evitar a exacerbação dos problemas que advêm quando o uso dessas substâncias torna-se excessivo, abusivo, aflito, incontrolável. 
As culturas ditas secas, isto é, aquelas que não admitem o uso de tais substâncias por razões morais, ao contrário, são aquelas em que os círculos viciosos da marginalização dos usuários só fazem piorar os riscos de que o jovem se torne adito, dependente ou viciado, levando-o a cometer crimes, a se afastar ainda mais dos círculos 4 sociais estáveis, a se tornar cada vez mais escravo da droga, dos seus pares e da sociedade dos marginalizados que se forma nos espaços urbanos para o uso exclusivo de drogas. 
No processo social que não é obrigatoriamente o de todos eles, a trajetória seguida pelo usuário pode variar segundo as escolhas pessoais dele, mas também segundo a reação dos seus familiares e membros de outros grupos sociais, inclusive a escola e a vizinhança, diante dele. 
Uns continuam lutando para manter o limite sobre o uso, mesmo de substâncias altamente viciadoras, para manter as ligações com a família e demais grupos sociais estáveis na escola, na vizinhança ou no trabalho, enquanto outros desistem de todo controle pessoal sobre o seu corpo e sua mente, de todo laço social, alienando-se e perdendo qualquer sinal de independência, como acontece com muitos usuários de crack que permanecem na rua onde usam descontroladamente esta substância. 
Os usuários de drogas, portanto, não formam uma categoria unívoca de pessoas. Pesquisas feitas mundialmente apontam diferenças em graus de envolvimento com a droga e com o grupo - se a tomam nas horas de lazer ocasionais, se ela é central na definição de um estilo de vida alternativo compartilhado com outros, se o seu uso se dá apenas no lazer ou em alguma atividade que precisa de estímulo, ou se ela é o eixo na definição da identidade individual do usuário compulsivo que a usa sempre e em qualquer lugar ou circunstância. 
Não é a demanda por drogas, decorrente de mudanças nos estilos de vida, que merece o qualificativo “destrutivo”, mas o uso incontrolado que envolve usuários com certas características pessoais e sócio-econômicas. Neste caso, o consumo obsessivo advém de variados problemas socioeconômicos que não conseguem enfrentar - baixo rendimento escolar, desemprego, discriminação, pobreza, conflitos familiares ou abandono familiar - acompanhado pelo aumento impressionante de crimes contra a propriedade e contra a vida. 
As experiências pessoais os levam a se tornar, recorrentemente, de um usuário funcional para um usuário da rua, de um agente social competente a um marginal. 
O abandono é mutuo: do usuário consigo mesmo e dos que o cercam para com ele. Desistir, abandonar, descuidar, largar, fugir são as palavras mais usadas por os que terminam na rua, submetidos às regras que ali predominam, 5 sendo estigmatizados por agentes da lei, transeuntes ou até mesmo agentes da saúde quando procuram ajuda. Não há como entender esses processos e mudanças sem incluir os significados subjetivos que os usuários e as pessoas que os cercam emprestam à droga, ao contexto do uso e ao lugar do usuário. 
Há muitos mal entendidos que precisam ser desfeitos. Supõe-se que, por exemplo, o uso inicial de uma droga aditiva leva necessariamente à dependência, seja ela física ou psicológica, confundindo-se iniciação com repetição, ou permanência do uso. Não se atenta para as diferenças culturais, locais e pessoais nesse processo cheio de idas e vindas, dependendo da política adotada. 
Outro equívoco é achar que os usuários, se soubessem dos efeitos negativos das drogas, deixariam de usar. Parte-se do pressuposto de que o jovem está mais preocupado com os riscos à saúde do que com a aceitação social pelos seus pares. Na verdade, o oposto acontece. 
Ele tem uma consciência sofrida desses efeitos, ele sabe que pode morrer por causa deles, mas não sabe como sair da armadilha em que ele próprio se colocou para seguir a aprovação dos seus pares, assim como da armadilha em que o estigma e o abandono reforçam ainda mais a sua desistência de lutar contra a sua dependência. A mesma força do grupo pode ser usada, entretanto, para fazê-lo mudar de substância, para tomar precauções no uso, para voltar a ter domínio sobre si. 
Sendo assim, é preciso buscar respostas locais e não a aplicação uniforme de políticas e dispositivos nacionais. Experiências na França, na Índia e outros países mostram que é preciso não só aumentar o conhecimento dramático já existente no usuário, mas também informar bem, combatendo o medo e os preconceitos daqueles que os cercam, começando pelos seus pais, mestres e cuidadores, estes sendo bem preparados para atuar junto e ajudá-los a interromper a fuga e assumir sua condição de sujeitos de suas ações. A tendência a tratá-los como vítimas sempre de uma entidade abstrata chamada sociedade, não os ajuda nesse processo. 
Procurar soluções comuns face às crises e encontrar estratégias comuns em longo prazo, fazer as instituições de atendimento funcionar para o acompanhamento dos toxicômanos e o processo de reinserção na família, na escola ou no trabalho não é trabalho para curiosos, religiosos ou amadores improvisados de curadores. 6 Nos planos macro e micro do tráfico de drogas ilegais, passei os últimos trinta anos estudando os seus efeitos culturais, políticos, econômicos e sociais, o que significa dizer os efeitos da criminalização do uso e comércio de algumas substâncias psicoativas que alteram o estado de consciência. Em resumo, afirmei que: 
O comércio e o consumo de drogas ilegais podem ser considerados como um setor do « consumo massivo de estilo » que é mais caro que o consumo familiar, isto é, despesas familiares vinculadas aos modelos seguros das famílias de trabalhadores. A sociedade do pós-guerra sofreu um processo acelerado de transformações econômicas, políticas e culturais que se traduziram na fragmentação social e na importância crescente do lazer e consumo como meios de definir novas identidades sociais, em particular a dos jovens. Tais mudanças indicam que as restrições morais convencionais, que existem sem a lei, enfraqueceram e que o controle social vem primordialmente das funções policiais de vigiar e aplicar a lei.
Não é novidade afirmar que o tráfico de drogas ilegais, tendo sido instituído como crime, tornou-se atividade econômica transnacional com conexões nos negócios legais. De fato, seus efeitos só são entendidos quando se tomam as relações simbióticas entre diferentes atores com interesses comuns que formam um tecido social, econômico e institucional entrelaçado. 
Este tecido compõe o elemento sistêmico que existe, no interior e fora das nações, nas redes trans-nacionais das atividades econômicas criminosas. Outra afirmação disseminada é sobre o processo de globalização, nem sempre esclarecendo a dinâmica que conecta as atividades ilegais ao sistema financeiro volátil e transnacional. Mas fala-se da predominância do capital financeiro, com jogos para ganhar dinheiro rapidamente no mercado, em detrimento da produção, especialmente a industrial. 
Não só a volatilidade do mercado financeiro internacional facilita manobras para a lavagem do dinheiro ganho em atividades ilegais diversas, como a própria cultura empresarial muda. O objetivo deixa de ser poupar para investir, e sim ganhar dinheiro facilmente para consumir de modo hedonista. 
Estimulou-se a nova cultura que afeta desde os empreendedores até o mais reles consumidor dos novos bens ofertados, legais 7 e ilegais.
O comércio de drogas faz parte do novo ambiente social, econômico e cultural. Valores individualistas e mercantis selvagens se disseminaram durante os anos 1970 e 1980 no Brasil, traduzidos pelas expressões corriqueiras como «levar vantagem em tudo», próprios da nova fase do capitalismo selvagem. 
A sociedade brasileira sofreu o impacto da colonização pelo mercado e passou a carecer dos limites morais fornecidos pelo social e pelo institucional preparado para enfrentar os novos desafios. Entretanto, há polêmicas. 
Uma das mais acirradas diz respeito à organização ou não do crime. Entendo que o crime organizado funciona em redes de conexões organizacionais e interpessoais, a um só tempo hierárquicas e horizontais, cujos fluxos operam em relações não corporativas. Rede refere-se a relações abertas no tempo e no espaço, conectando intermediários ligados por laços de diversos tipos, ocasionais ou não. 
Esta perspectiva permite compreender como padrões macro-sociais estão presentes nas atividades e relações micro-sociais no varejo do comércio de drogas em territórios dominados. Permite também entender a persistência de tais arranjos apesar dos conflitos mortais que resultam da clandestinidade, ceifando vidas de jovens que operam nas pontas das redes. Polêmico também é o entendimento do impacto econômico do tráfico de drogas. Há quem afirme que este atende às exigências para definir um empreendimento capitalista: envolve capital, trabalho e mercados, sendo hoje um dos maiores setores econômicos mundiais. 
Do ponto de vista de uma economia schumpeteriana, criaria desenvolvimento, isto é, geraria inovações industriais e retornos crescentes no setor produtivo, pois se baseia em inovações industriais na produção das drogas. Sendo criador de riquezas e de empregos, aumentaria a velocidade e o volume na circulação de dinheiro. Porém, muito pouco se aprofundou na micro-sociologia das relações entre o dinheiro e o tráfico, entre o comércio que atravessa fronteiras nacionais e os efeitos políticos, culturais e econômicos dentro de países. 
Um dos principais problemas mundiais é a incapacidade demonstrada pelos estados nacionais de coibir o uso de drogas ilegais, bem como o mundo criminal sinistro que se desenvolveu para fazê-las circular por toda parte com 8 uma logística impressionantemente eficaz. 
Este mercado é apenas parte do sistema do crime-negócio que está em diversos setores, utilizando redes e mecanismos similares com o intuito de aparentar operações limpas e legais. Já que os setores econômicos, sobretudo os ilegais, misturam os mercados formal e informal, setores legais e ilegais, ao mesmo tempo em que conectam instituições governamentais a traficantes, os negócios destes penetram em muitos dos setores legais da sociedade. 
Tais setores funcionam freqüentemente na economia formal, mas obtém parte de seus lucros no tráfico de drogas. Bancos, mercado imobiliário e companhias de transporte fornecem serviços para os negócios ilegais e os mecanismos principais da lavagem de dinheiro sujo. 
Mas não se trata de mercado aberto, mesmo considerando que mercados sempre funcionaram de forma imperfeita. Pois só podem ser admitidos nele os que gozam da confiança e têm a permissão de quem tem um lugar melhor na rede criminal. 
Fruto da ambição de atingir amplos e fáceis lucros ilegalmente, o narcotráfico fomenta a criação de restrições ao livre comércio desde o atacado até o varejo. Mesmo assim, num contexto de pouco desenvolvimento econômico e desindustrialização, mais pessoas podem vir a ser atraídas ao arriscado negócio e organizar suas ações de modo a obstruir a detecção e a acusação judicial, seguindo o jogo sujo e necessariamente violento dos fora-da-lei. 
O primeiro paradoxo do crime-negócio é que, surgido em nome da liberdade de ação, transcende a lei e nega os princípios mais caros ao liberalismo econômico. 
A macroeconomia da droga, embora suscite crescimento econômico e aumente a circulação de moeda, tem efeitos perversos nos planos político e cultural que se revelam de maneira dramática nos pontos finais dos seus arranjos reticulares. 
O crime organizado aumentou em muito a violência em alguns setores, especialmente o do tráfico de drogas no varejo. 
Os que ocupam posições estratégicas nas redes podem ter rápidos ganhos devido à combinação de poucos limites institucionais e corrupção, mas fomentam práticas subterrâneas e violentas de resolução de conflitos na luta perene pelo controle do comércio e do poder: ameaças, intimidação, chantagem, extorsão, agressões, assassinatos. O segundo paradoxo da proibição das drogas começa de uma demonstração do poder do Estado ao proibir o seu comércio, porte e uso. 
A 9 droga, tornada ilegal pelas leis do estado, passa a ameaçar a organização, governança e o princípio básico da existência do estado: o monopólio legítimo da violência. 
Não surpreende que o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas tenha concluído que o crime organizado, com a capacidade de expandir suas atividades a ponto de ameaçar a segurança e a economia dos países, particularmente os que estão em transição e desenvolvimento, representa o maior perigo que os governos têm de enfrentar para assegurar a estabilidade, segurança e preservação da tessitura social, e a continuidade do desenvolvimento econômico. Este paradoxo no exercício de poder do Estado, que passa a ameaçar a capacidade estatal, fica mais claro em países em desenvolvimento, mas com fraco aparato institucional. 
Corrupção institucional, irreverência pela lei, ineficácia no sistema de Justiça, ineficiência das políticas de prevenção e tratamento no uso abusivo, conspiraram para que a violência urbana aumentasse desastrosamente, onerando custos do sistema de saúde e impossibilitando a execução de outras políticas no combate à pobreza. O tiroteio cada vez mais comum nos bairros populares e favelas, o uso de armas de fogo nas ruas, praças e escolas, a proibição expressa de traficantes quanto ao ir e vir de favelados e servidores públicos têm prejudicado os moradores, obrigados a mudar ou a enfrentar a obstrução das poucas vias existentes nas favelas. Impede a entrada de inimigos, mas também a de vans, ambulâncias e caminhões de lixo ou de entrega. 
O terceiro paradoxo é aquele que se refere à relação entre o consumidor e a droga que pode acabar por destruí-lo, ameaçando a existência do mercado consumidor. Este é o de mais fácil solução, pois os contextos de uso, os usuários e a relação deles com diferentes drogas não são homogêneos. Neste país, começou-se tardiamente a investigar a provisão de drogas e armas ilícitas ou o poder das redes de traficantes, principalmente suas conexões com empresas e instituições legais. 
Apesar da criação de fundos para o controle público dessas ações durante os anos 1990, só recentemente deu-se atenção aos interesses econômicos e políticos conectados à economia da droga, particularmente as interações tecidas entre o mundo visível e o invisível, o legal e o ilegal, o formal e o informal. 
Em outras palavras, se bem que a Policia Federal tenha começado ainda incompletamente a examinar o crime organizado, as 10 Polícias Estaduais intervêm principalmente na repressão violenta e esporádica de favelas e bairros pobres nas regiões metropolitanas e capitais. Estamos no pior dos mundos e o debate ainda está nos seus primórdios. A desinformação e os preconceitos, acumulados durante as décadas de uma política repressiva não têm ajudado a encontrar soluções inovadoras. 
Na Europa, o debate e as políticas públicas estão bem mais avançados em vários países, tais como Portugal, Espanha, Itália, Holanda, Inglaterra. Mesmo na França, que não aceitava a separação entre drogas leves e pesadas, discute-se a legalização de uma droga menos aditiva - a maconha-, mas que sempre foi considerada como a abertura para drogas mais pesadas. As boas políticas públicas são aquelas que minimizam o custo social, ou seja, melhoram o bemestar da população, a um menor custo monetário. 
A repressão é muito mais cara e não conseguiu diminuir o consumo da maconha na França que aumentou ao longo dos últimos anos, segundo atestam recentes estudos do Observatoire Français des Drogues et des Toxicomanies (OFDT) e do Institut National de Prévention et d’Éducation pour la Santé (INPES). 
Em 2010, um terço (14 milhões)dos adultos entre 18 e 64 anos declararam ter consumido canabis ao longo da vida, 8% 4 milhões) nos últimos 12 meses, 4 % (1,5 milhão) no último mês, sendo principalmente jovens (64% dos homens entre 24 e 36 anos; 40% das mulheres entre 18 e 34 anos). 
A conclusão foi de que se tratava de um fenômeno de grande amplitude e não a diversão ou maluquice de hippies marginais. 
Entre a penalização e a descriminalização, entre a repressão e o liberalismo existe a terceira via, como a chamam os franceses, da regulamentação e do controle via legalização. 
Manter altos preços, controlando a produção e o local de venda, restringindo esta a adultos identificados, pode minorar em muito os efeitos negativos do uso das drogas, além de eliminar os efeitos ainda mais nocivos do tráfico armado. 
Segundo Pierre Kopp, economista da droga, a França economizaria 300 milhões de euros gastos com as investigações judiciais, excluindo as prisões e os júris, o que economizaria cerca de um bilhão de euros. Gasta-se muito menos com a prevenção e a educação que forneceria também outros meios de obtenção de prazer e reconhecimento entre os jovens. 11 A legalização, entretanto, não deve ser entendida como um direito ao consumo de toda e qualquer substância, por qualquer pessoa em qualquer lugar. Pois não se trata de um direito específico ao uso de uma droga que, usada excessiva ou inadequadamente, pode ter graves conseqüências sobre a saúde física e mental do usuário. A legalização sob controle permite a responsabilização de todos os atores envolvidos, inclusive do usuário com a sua própria saúde, além de libertar agentes e verbas para a repressão dos que só pensam em aumentar os lucros com a desgraça alheia.

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