Lazer e Uso de Drogas: a partir do
olhar sociológico
Leisure and the Use of Drugs: a s
Sociological view
Resumo: Lazer, juventude e consumo de drogas: eis os elementos que
compõem a temática central das reflexões aqui desenvolvidas, com o
intuito de reiterar a necessidade do diálogo entre as áreas do conhecimento.
O uso abusivo de drogas representa uma das questões de maior
evidência na sociedade moderna, uma vez que o número de jovens consumidores
aumenta na mesma proporção da diminuição da faixa etária.
Assim, este artigo tem por objetivo salientar a necessidade de aproxima-
ção entre algumas áreas do conhecimento, tendo em vista que as situa-
ções de uso e suas consequências ocorrem no âmbito social. Trata-se de
pesquisa com abordagem sociológica desenvolvida por meio de estudo
bibliográfico, cujos resultados expõem o problema e a necessidade da
interlocução entre áreas, considerando a urgência de um enfoque multidisciplinar
visando à diminuição das consequências negativas que o uso
abusivo promove, pois, além de complexo, o fenômeno em questão tem
características biopsicossociais que exigem diferentes olhares. Por se tratar
de um fenômeno complexo e multifatorial, resultante de um modo
de funcionamento da própria sociedade na qual é verificado, o uso de
drogas deve ser enfocado pelos diferentes campos do conhecimento e,
para além da efetivação do necessário diálogo entre as áreas, deve estar
desvencilhado de possíveis preconceitos e ranços moralistas comumente
vinculados ao tema aqui proposto.
Palavras-chave juventude; droga; lazer.
Introdução
Este artigo visa provocar reflexões sobre um
dos fenômenos sociais que, atualmente,
mais consequências têm trazido a uma parcela
da população jovem. Assim, propõe tratar da
questão do uso abusivo de drogas e suas relações
com o lazer a partir de uma abordagem sociológica.
Tal esforço se dá pelo fato de os pesquisadores
do presente trabalho entenderem o uso de drogas
como uma questão permeada por aspectos biológicos
e legais e que deve ser estudada também à luz
da sociologia, uma vez que os diferentes usos das
várias drogas e pelos mais diversos motivos dão-se
no âmbito social.
Nota-se que há escassez de diálogo entre as
diversas áreas do conhecimento, assim como no
interior das Ciências Sociais, e as consequentes
contribuições que tais diálogos e abordagens poderiam
oferecer às discussões de temas sociais são
pouco encontradas, ocasionando estudos e compreensões
a partir de uma única vertente.
Alguns problemas sociais apresentam tal
grau de complexidade que não podem ser contemplados
por um único olhar, ou pela visão de
uma única área do conhecimento, sob pena de
ter seu entendimento limitado por concepções
fragmentadas. Nesse sentido, torna-se necessária
a união de diferentes olhares, de múltiplas compreensões,
de enfoques trazidos pelos diversos
campos do conhecimento.
O lazer e o uso de drogas, temas cujas confluências
são aqui trazidas à reflexão, exigem a
composição de olhares de diferentes áreas do conhecimento,
pois, mesmo quando debatidos separadamente,
em geral são acompanhados de preconceitos
e moralismos e, quando se apresentam
reunidos para a discussão, a discriminação e os ran-
ços moralistas fazem-se ainda mais intensificados.
Dessa forma, este artigo pretende enfocar a
intersecção dos temas visando chamar a atenção
para a necessidade da comunicação entre diferentes
áreas do conhecimento, pois, embora ambos
os problemas sejam recorrentes na sociedade atual,
as discussões e os estudos encontram-se ainda
marcados por um número restrito de diálogos
multi e interdisciplinares.
Abordagens em Campos Específicos
Há muito tempo, na área da saúde, a Medicina,
além de ser a principal interlocutora das
questões relacionadas ao uso e abuso de drogas,
tem desenvolvido pesquisas cujo foco, na maioria
das vezes, refere-se a estudos clínicos e epidemiológicos
com ênfase nas terapias e nos medicamentos.
Ou então, debruçam-se sobre os efeitos
que o uso e abuso provocam no corpo humano,
apontando as reações das drogas e seus impactos
nas redes neurais, no sistema nervoso, além das
consequências hepáticas, cardíacas, neurológicas,
dentre outras.
No campo jurídico, os estudos encontram-se
relacionados às questões legais, mais preocupadas
com a venda e distribuição das drogas ilícitas. Ocupam-se
das ações promovidas pelo tráfico ou da
elaboração de leis referentes à legalização e descriminalização,
dentre outras questões que caminham,
invariavelmente, na direção da repressão à distribui-
ção e ao uso de drogas, especialmente as ilícitas.
Mesmo quando outras áreas do conhecimento
são trazidas à discussão, os discursos são conduzidos,
geralmente, por profissionais da saúde, sem
considerar que o uso de drogas se dá no âmbito social,
e que os sujeitos devem ser tomados de forma
contextualizada, histórica e socialmente.
Ainda que alguns aspectos relativos ao uso
de drogas sejam de ordem social, pois é no cotidiano
que eles ocorrem, a escassez de abordagens
interdisciplinares visando ao diálogo entre
áreas do conhecimento e, consequentemente,
maior intercâmbio entre elas restringe as possibilidades
de efetivação de uma compreensão mais
ampla do fenômeno.
As abordagens de caráter interdisciplinar,
embora ainda bastante escassas, são necessárias
para que intervenções sejam efetivadas no sentido
da diminuição das consequências que o problema
promove tanto em termos individuais (físicos e
emocionais nos usuários) como sociais (na famí-
lia, no trabalho, na religião, na educação, no sistema
de saúde, no trânsito, no lazer, etc.).
Historicamente, as ciências apresentam-se
recortadas por áreas de conhecimento que poucas
trocas realizam entre si, consequências de resquícios
da mentalidade positivista que persiste na
atualidade. Há quase meio século Japiassu (1976)
fazia referência ao fato, denominando-o de patologia
geral do saber. Ao tecer a crítica sobre a compartimentarização do saber, o autor defende
a necessidade de se fazer ciência de forma interdisciplinar
e argumenta: “Encontramo-nos diante
de uma alienação científica. Diagnosticar o mal é
apenas o primeiro momento. O interdisciplinar se
apresenta como o remédio mais adequado à cancerização
ou à patologia geral do saber” (JAPIASSU,
1976, p. 31).
A interdisciplinaridade representa o caminho
possível para que cada especialização transcenda
seu espaço, estabelecendo as trocas favoráveis
ao avanço do conhecimento. Assim, no
prefácio da obra de Japiassu, é Gusdorf (1976,
p. 26) quem destaca: “A exigência interdisciplinar
impõe a cada especialista que transcenda sua pró-
pria especialidade, tomando consciência de seus
próprios limites para acolher as contribuições de
outras disciplinas”.
O encontro entre especialistas não deve
se resumir à troca de dados, mas promover ricas
oportunidades de intercâmbios entre as áreas, segundo
o autor:
[...] esses encontros serão considerados
o lugar e a ocasião em que se verificam
verdadeiras trocas de informações e
de críticas, em que explodem as ‘ilhas’
epistemológicas mantidas pela compartimentarização
das instituições ainda
às voltas com as ‘fatias do saber’, em
que as comunicações entre especialistas
reduzem os obstáculos ao enriquecimento
recíproco, em que os conflitos,
o espírito de concorrência e de
prosperidade epistemológica entre os
pesquisadores devem ceder o lugar ao
trabalho em comum em busca de interação
[...] (GUSDORF, 1976, p. 26).
Não se trata, no entanto, da perda da especificidade
de cada área, e sim das possíveis colaborações
que cada uma possa ofertar às demais
a partir do diálogo, da troca e das possíveis interferências
que o saber de um determinado campo
do conhecimento possa apresentar como contribuição
a outro.
Comungando do mesmo pensamento, Elias
e Dunning (1992, p. 49) ressaltam:
Existem especialistas de estudos da
sociedade, especialistas do estudo da
personalidade e muitos outros, cada
grupo a trabalhar como se estivesse em
sua torre de marfim. Dentro dos seus
limites, cada grupo produz, sem dúvida,
importantes resultados de pesquisas,
mas existem vários problemas que
não podem ser explorados dentro das
fronteiras de uma única especialidade.
A afirmação de Elias e Dunning (1992) clama
por necessidades semelhantes àquelas levantadas
por Japiassu (1976) e visa evidenciar o imperativo
das trocas entre as áreas do conhecimento
tanto no âmbito interno de uma mesma ciência
quanto no externo, culminando nas abordagens
em que emerge a interdisciplinaridade.
Também fazendo referência às abordagens
interdisciplinares e dando ênfase à intensidade das
trocas entre os especialistas, Marcellino (1988, p.
107) sugere “O interdisciplinar exige muito mais
do que a soma de conhecimentos; o que se busca
é superar os limites de cada disciplina”. Marcellino
(1988) propõe as possibilidades do diálogo no
conhecimento e afirma que a colaboração entre os
setores heterogêneos de uma mesma ciência conduz
a interações e reciprocidade nos intercâmbios,
enriquecendo todo o processo.
Embora passados mais de trinta anos das
denúncias do sociólogo, e supondo que elas já
tivessem sido mencionadas anteriormente, ainda
não são verificadas mudanças efetivas no universo
da ciência, especialmente no que concerne aos
estudos sobre o uso de drogas e o lazer, temas
propostos nesta reflexão.
O Uso de Drogas na Sociedade
Sabe-se ainda muito pouco a respeito da influência
dos distintos fatores que incidem sobre o
uso de drogas, mas é certo que, de modo geral, o
uso tem se dado, ao menos no início, preferencialmente
nas situações de lazer, de vivência do ócio,
do tempo disponível das pessoas.
Nesse sentido, Henriques (2002) ressalta
que novas drogas associadas a novas práticas de
consumo obrigam que questões antigas sejam
recolocadas de uma nova forma, sendo conside-
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radas à luz da complexidade das sociedades contemporâneas.
Para Henriques (2002), ao longo dos tempos
tem sido corrente a utilização de várias substâncias
em diferentes culturas, sempre com o
poder de aliviar o sofrimento e de modificar o humor,
porém os consumos estão generalizando-se
e intensificando-se. Em tempos de globalização e
de consumismo, também os consumos de drogas
encontram-se massificados e diversificados.
Com relação às bebidas, Adorno (2008) faz
referência à presença do álcool em situações de
lazer, pautado em estudos de Alain Ehrenberg
(1995), sociólogo francês que denominou de “lubrificantes
da sociabilidade popular” as bebidas,
mostrando que o uso delas faz parte das situações
de lazer e recreação de diferentes camadas sociais.
Ainda assim, não é prudente delegar unicamente
ao campo do lazer a responsabilidade pelos
usos que dele se faz. O olhar deve se estender a
todas as vertentes sociais, considerando também
suas confluências, para então supor a possibilidade
de algum entendimento do fenômeno aqui
proposto à análise, sem perder de vista que tais
respostas serão parciais, considerando-se a complexidade
que o fenômeno encerra.
Os fatores apontados como responsáveis
pelo uso de drogas na sociedade moderna são
tão diversos quanto contrários. Os problemas são
antagônicos e o uso de drogas é verificado nas
distintas camadas sociais, assim como os usos das
diferentes drogas.
Com o objetivo de determinar a prevalência
do uso pesado de drogas por estudantes de primeiro
e segundo graus de uma cidade de médio porte
no interior do Estado de São Paulo, a partir de uma
amostra de escolas públicas e particulares, pela
qual foram identificados fatores demográficos, psicológicos
e socioculturais associados, Soldera et al.
(2004) notaram que o uso pesado de drogas lícitas
e ilícitas apresentou-se assim distribuído em termos
percentuais: álcool (11,9%), tabaco (11,7%),
maconha (4,4%), solventes (1,8%), cocaína (1,4%),
medicamentos (1,1%), ecstasy (0,7%).
A referida pesquisa aponta ainda que o uso
pesado foi maior entre os estudantes da escola pú-
blica central do período noturno. Esses estudantes
trabalhavam, pertenciam aos níveis socioeconô-
micos A e B e sua educação religiosa na infância
foi pouco intensa. A maior disponibilidade de dinheiro
e os padrões específicos de socialização foram
identificados como fatores associados ao uso
pesado de drogas entre os estudantes analisados.
Com objetivo de verificar possíveis associa-
ções entre o nível socioeconômico, o estilo de vida
e o consumo de drogas, a partir de estudos desenvolvidos
por Silva et al. (2006), foram apresentadas
as seguintes relações sobre o nível econômico:
a renda familiar mensal mostrou-se relacionada ao
uso de álcool e drogas ilícitas. Os alunos com renda
familiar superior a quarenta salários-mínimos
mensais apresentaram o maior uso para o álcool
(92,2%) e drogas ilícitas (39,2%). Em contrapartida,
os alunos cuja renda familiar era inferior a
dez salários-mínimos mensais obtiveram o menor
uso de álcool (75,2%) e de drogas ilícitas (16,7%).
O consumo de tabaco e de medicamentos com
potencial de abuso não apresentou relação com a
renda familiar mensal.
Portanto, observa-se que não há um crité-
rio único, não há um padrão ou uma regra que
determine a camada social na qual será detectado
o maior uso. Existem, sim, inúmeras dúvidas e a
constatação do crescente número de usuários a
cada novo estudo apresentado. Observa-se também
que algumas drogas são usadas por públicos
específicos, com fins e situações igualmente específicos
(BUCHER, 1992).
No entanto, a compreensão simplista e ingênua
comumente verificada é, em parte, resultante
da visão fragmentada acerca do problema,
reforçada pelo fato de ele não ser situado historicamente
com o propósito de entender o uso de
droga em sua dimensão dialética, isto é, influenciando
ao mesmo tempo em que também recebe
a influência do modo de funcionamento da sociedade
na qual esse uso é verificado.
O uso abusivo de drogas lícitas ou ilícitas representa
um problema de ordem biopsicossocial
e, deve ser abordado considerando-se as dimensões
que o compõem, quais sejam, o indivíduo, a
droga e o contexto social, segundo Bucher e Oliveira
(1994) e MacRae e Vidal(2006).Desse modo, refletir sobre estudos que
abordem o uso de drogas ou o lazer dos indiví-
duos os quais não sejam simultaneamente estudos
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da sociedade são análises parciais e desprovidas
de contexto.
MacRae e Vidal (2006) tecem uma crítica a
estudos que privilegiam abordagens epidemiológicas
e denunciam que as pesquisas têm se desviado
dos fatores socioculturais que plasmam o uso de
drogas, buscando, por meio do modelo de causalidade
biomédico, relações entre o agente patogênico
(droga) e o organismo enfermo (usuário de droga).
Sob esse aspecto, constata-se ainda a forte
influência da área médica sobre questões que
ultrapassam os limites do corpo biológico para
adentrarem o corpo sociológico e todas as interferências
vividas por este.
A visão fragmentada da ciência dificulta a
possibilidade de um olhar mais abrangente, especialmente
sobre problemas de cunho social, quando
o olhar não tem um alcance global para analisar
fenômenos cujas características são multifatoriais.
Ainda que o problema na atualidade venha
sendo discutido de modo mais abrangente, MacRae
e Vidal (2006, p. 647) comentam:
Assim, embora tenha se tornado muito
difundida e bem aceita a idéia de
que a questão das drogas só pode ser
apreendida em toda sua complexidade
por meio de uma abordagem biopsicossocial,
as ciências da saúde detêm
uma quase hegemonia sobre o discurso
considerado legítimo e competente
para esse tema.
Cabe, pois, estabelecer algumas aproxima-
ções entre os temas com o objetivo de contribuir
para que novas reflexões e debates ocorram, visando
promover o maior diálogo entre as áreas e
provocando futuras pesquisas a partir de diferentes
olhares que compõem o universo da ciência
tanto quanto dos fenômenos por ela estudados.
Lazer e Uso de Drogas
Desde a Pré-História, diferentes substâncias
psicoativas vêm sendo usadas para um grande leque
de finalidades que se estendem do seu emprego
lúdico, com fins estritamente prazerosos até o
desencadeamento de estados de êxtase místico/
religioso, segundo MacRae (2009).
Uma pesquisa de Martins (2006) sobre a relação
entre as drogas e os jovens estudantes de
uma cidade de médio porte, no interior do Estado
de São Paulo, detectou o uso de álcool em
duas situações: nos fins de semana e em eventos
esporádicos, classificados como festas populares,
festas com amigos, bar ou boate e festas em família.
Pode-se afirmar que são todas ocupações
de lazer, uma vez que correspondem a situações
de livre adesão e realizadas num tempo disponível
dos indivíduos.
Scivoletto e Morishisa (2001) também se
referem ao uso de drogas de modo recreativo, ressaltando
que este se dá em situações de lazer.
Silva et al. (2006) desenvolveram estudos
com o objetivo de verificar o quanto o estilo de
vida e a situação socioeconômica estão relacionados
ao uso de álcool, tabaco, medicamentos e
drogas ilícitas por parte de universitários da área
de ciências biológicas de uma universidade pública
do Estado de São Paulo. Os resultados do estudo
apontam uma relação entre o uso de drogas
ilícitas e número de horas livres por dia de fim de
semana, detectando-se maior satisfação quanto à
frequência do lazer entre os alunos que utilizavam
drogas ilícitas Tal diferença na satisfação quanto
ao número de horas livres não foi percebida entre
usuários e não usuários de álcool, tabaco e medicamentos
com potencial de abuso.
Madu et al. (2003) encontraram também
uma correlação entre o aumento do uso de tabaco
e de drogas quando os alunos estão mais cansados,
estressados, deprimidos ou em festas. O uso
de álcool foi maior quando os alunos estavam em
festas ou durante os fins de semana e horários livres.
Essa observação condiz com os resultados
obtidos no presente trabalho, mostrando que os
usuários dessas substâncias estão mais fora de
casa e, consequentemente, mais expostos ao uso.
Os fenômenos sociais carregam em si diferentes
aspectos que o compõem, perfazendo sua
totalidade. Nesse sentido, para que eles possam
ser compreendidos, todas as nuanças devem ser
consideradas e analisadas.
Para Leme (1988, p. 98),
Uma vez que a realidade social se compõe
de fenômenos que se relacionam
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entre si, é importante destacar que essas
relações não se dão livremente, ao
acaso, mas, sim, obedecem sempre a determinações
históricas, ou seja, são configuradas
num espaço tempo determinado
que lhes garante a especificidade.
As especificidades são aquelas presentes
tanto na sociedade quanto no fenômeno em si.
Não basta o olhar acusatório para o uso de drogas
ou para determinados comportamentos dele
advindos. Há de se considerar o contexto social
no qual ele se dá, além de perceber o indivíduo
historicamente situado.
Nenhuma questão social é passível de ser
compreendida isoladamente. O uso de drogas, assim
como as manifestações de lazer do público
jovem, deve ser entendido a partir do todo, sem
incorrer em fragmentações que reforcem olhares
recortados que pouco contribuem para a compreensão
dos problemas e das possíveis proposições,
seja em termos de políticas públicas de lazer, de
prevenção, ou outras formas de intervenção.
O aumento do número de usuários de drogas
lícitas e ilícitas e as consequências sociais,
diretas e indiretas, provocadas pelo uso abusivo
representam problemas que não podem ser tratados
dentro das fronteiras da área médica ou legal
ou de qualquer outra área do conhecimento que
se proponha a fazê-lo de forma isolada, ou que
desconsidere o contexto sociocultural.
Tampouco a vivência do lazer e os modos
de ocupação do tempo disponível podem ser
responsabilizados, de modo descontextualizado
e independente dos demais aspectos da vida em
sociedade, pelo uso que dele se faz.
Marcellino (2008, p. 12) defende que:
O entendimento do lazer de modo isolado,
sem considerar as mútuas influ-
ências que podem ocorrer, e certamente
ocorrem, com as várias esferas da
vida social, tem provocado uma série
de equívocos [...] Quanto mais complexa
se torna a sociedade, maiores são as
necessidades de inter-relações entre os
vários componentes da vida social para
o seu entendimento.
O sociólogo destaca ainda que:
A relação que se estabelece entre lazer
e sociedade é dialética, ou seja, a mesma
sociedade que o gerou, e exerce influências
sobre o seu desenvolvimento
também pode ser por ele questionada,
na vivência dos seus valores. (MARCELLINO,
2008, p. 12).
É importante ressaltar ainda que o lazer, de
acordo com o autor, tem duplo aspecto educativo,
sendo veículo de educação e objeto de educação:
Tratando-se do lazer como veículo
de educação, é necessário considerar
suas potencialidades para o desenvolvimento
pessoal e social dos indivíduos.
Tanto cumprindo objetivos consumatórios
como para o relaxamento
e prazer propiciados pela prática ou
pela contemplação [...] Por outro lado,
para o desenvolvimento de atividades
no ‘tempo disponível’, de atividades de
lazer, quer no plano da produção, quer
no plano do consumo não conformista
e crítico, é necessário aprendizado
(MARCELLINO, 2008, p. 12).
Ainda que grande parte do uso de drogas
se dê em situações de lazer, conforme explicitado
anteriormente, e que o lazer possa desempenhar
seu duplo aspecto educativo, como veículo e objeto
de educação, há de se considerar que o modo
de vivência desse tempo tem relação direta com as
demais esferas da vida humana.
Desse modo, as funções do lazer só podem
ser compreendidas se forem consideradas parte
constituinte de um todo indissociável, que se refere
à vida em sociedade. Portanto, não se trata de
colocar o lazer no banco dos réus, como se fosse
a manifestação social responsável pelo uso de drogas,
mas de buscar compreender as relações aqui
apresentadas de modo mais abrangente, uma vez
que vinculadas às demais esferas da vida.
Lazer e Prazer
A complexidade que envolve a questão do
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uso de drogas foi ressaltada por Bucher (1992),
ao advertir que, em muitas abordagens a respeito
do consumo, o aspecto do prazer proporcionado
pelo uso não era considerado, como se o prazer
fosse secundário à vida humana.
No entanto, há de se admitir que a desconsideração
do prazer não é restrita às questões e aos
estudos sobre drogas.
É tema intrínseco das discussões da sociologia
que abordam o lazer que, por também estar
relacionado a um tempo e espaço de manifestação
do prazer, não recebe o mesmo tratamento de outros
fenômenos que compõem a dinâmica social.
Assim, sobre os tabus que acompanham as
discussões que envolvem a temática do prazer,
Elias e Dunning (1992, p. 123) afirmam:
Dentro do contexto de uma tradição
como a nossa, as discussões sobre problemas
de prazer tendem a ser desequilibradas:
a propensão para banir o lazer
como tema de conversas sérias ou de investigações
correspondente à tendência
para vincar excessivamente a sua relevância,
o que é característico do esforço
que é necessário fazer quando alguém
se aproxima de uma zona de tabus.
Os autores ressaltam que, apesar da importância
social de alguns fenômenos, por exemplo,
os desportos (pode-se estender tal projeção também
ao lazer), seus estudos foram desprezados
como áreas de investigação da sociologia e argumentam
explicações possíveis:
[...] a sociologia orientou-se para o
campo restrito dos aspectos ‘sério’
e ‘racional’ da vida, o que teve como
efeito que o divertimento, o prazer, o
jogo, as emoções e as tendências ‘irracionais’
e ‘inconscientes’ do homem e
da mulher tivessem merecido escassa
atenção no âmbito da teoria e da investigação
sociológicas (ELIAS; DUNNING,
1992, p. 16).
Entretanto, as funções do lazer só podem
ser compreendidas se forem consideradas como
parte constituinte de um todo indissociável, que
se refere à vida humana em sociedade.
Para Bosi (1978), a indissociabilidade das
relações entre trabalho e lazer finda por provocar
vivências alienadas. Argumenta a autora: “[...]
se no trabalho e no lazer corre o mesmo sangue
social, é de se esperar que a alienação de um gere
a evasão e processos compensatórios de outro”
(BOSI, 1978, p.76).
Bosi (1978) observa a transferência de situações
alienantes vivenciadas em um domínio da
vida, provocando reflexos em demais setores, o
que permite afirmar que, na atual sociedade capitalista,
o modelo de trabalho alienado gera,
consequentemente, a possibilidade de vivência de
lazeres alienados.
Desse modo, para se compreender o lazer
e os modos de ocupação do tempo disponível, é
prudente buscar também a compreensão de outras
esferas da vida humana que não somente o lazer
ou trabalho, por exemplo, a família e a religião.
O mesmo critério pode ser empregado em
estudos que busquem a compreensão do uso de
drogas quer em situações de lazer ou não, porém
considerando, principalmente, que tal uso se dá
em situações de convívio social, também se devendo
buscar compreender as demais esferas da
vida do homem.
Elias e Dunning (1992, p. 21) mencionam
os modos fragmentados de se olhar para o homem
e para a sociedade e desenvolvem sua teoria
visando resolver essa dicotomia cuja tendência
está em: “reduzir os estudos das pessoas e das sociedades
a um ou a outro plano, num conjunto de
sobreposições dicotômicas”.
Homem e sociedade fazem parte de uma
natureza que, embora não se constitua num tecido
homogêneo, representa um todo diferenciado que
se inter-relaciona.
Consideram ainda os sociólogos mencionados
que, para se estudar questões do lazer, não
basta apenas abandonar as limitações impostas
pela dicotomia trabalho-lazer, afirmando que os
problemas relacionados ao tempo disponível só
podem ser entendidos se os seres humanos forem
estudados de modo global.
Eles ressaltam a importância de se tomar o
lazer sob um aspecto bastante abrangente e des-
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tacam que: “[...] sua principal função parece ser a
de ativar formas de excitação agradáveis, estas não
podem ser devidamente compreendidas por meio
de uma abordagem sociológica que ignore as suas
dimensões psicológicas e fisiológicas” (ELIAS;
DUNNING, 1992, p. 34).
Os autores defendem que o controle das sociedades
industrializadas coincide com o domínio
das expressões das emoções em público, pois nas
sociedades mais avançadas são menos frequentes
as situações críticas sérias que originam comportamentos
de excitação nos indivíduos, uma vez
que aumentou o controle social e o autodomínio
da excitação exagerada.
A agradável excitação-prazer que as
pessoas procuram nas suas horas de
lazer, representa assim, ao mesmo
tempo, o complemento e a antítese da
tendência habitual perante a banalidade
das valências emocionais que se deparam
nas premeditadas rotinas ‘racionais’
da vida [...] (ELIAS; DUNNING,
1992, p. 115).
Quando se comparam as sociedades menos
desenvolvidas com as sociedades industriais,
observa-se que nestas últimas são menos frequentes
as situações que permitem aos indivíduos
comportamentos de excitação. Estabeleceu-se
aos poucos nessas sociedades uma necessidade de
autodomínio das manifestações exageradas, tendo
por consequência a necessidade de outras formas
de expressão. Nesse sentido, os comportamentos
promovidos como resultado do uso de drogas podem
representar uma das situações de expressão
de comportamentos de excitação nos indivíduos,
uma vez que, dentre os efeitos do uso, é característica
a ausência do autodomínio.
Em estudos que relacionaram o comportamento
sexual de jovens estudantes com o uso
de drogas, Scivoletto et al. (1999) apontam a maconha
e o álcool como as substâncias que apresentaram
maior associação com comportamento
sexual de risco.
Ainda acerca da ausência do autodomínio,
Minayo e Deslandes (1998) mostram a relação entre
o uso de drogas e a violência, considerando,
no entanto, a complexidade que a articulação entre
os temas requer. A violência social tem raízes
em fatores distintos e polissêmicos e, portanto,
exige, tanto no âmbito da ação quanto no da reflexão,
que o estudo da temática seja respaldado
pelo debate entre cientistas sociais e cientistas naturais,
entre organizações não governamentais e
representantes das secretarias e coordenações de
programas de saúde e de outros setores da ação
pública, ultrapassando preceitos normativistas da
conduta dos indivíduos e preconceitos sociais.
As autoras reforçam a necessidade de ações
conjuntas, embasadas por compreensões abrangentes
que tomem o homem integralmente e dentro
de um contexto sócio-histórico, que possam
contribuir para as mudanças necessárias.
Dados dos autores: Liana Abrão Romera
Professora doutora do curso de Educação Física da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Membro do Grupo de Pesquisa em Lazer (GPL)
Nelson Carvalho Marcellino
Professor doutor do Programa de Mestrado em Educação Física
da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep)
Líder do Grupo de Pesquisa em Lazer (GPL)
Recebido: 25/3/10
Aprovado: 25/8/10.