segunda-feira, 5 de julho de 2010

Cosmologia do rock metal -

Cosmologia do rock metal

4/7/2010




Pesquisadora dos rituais na cena metaleira de Fortaleza, a socióloga Abda Medeiros, doutoranda pela Universidade Federal do Ceará, escreve sobre as "festas" de metal e os códigos identitários dos headbangers

Os lugares e os espaços que compõem os espetáculos de metal se configuram como territórios em movimento, deslocamentos, uma espécie de caminho que se constrói na medida em que se passa e se segue adiante. Já o tempo é o elemento-chave em que as narrativas constituidoras das apresentações de metal encontram a base de sustentação percebida nas apresentações, na performance e nos valores ali embutidos e renovados a cada show. E, em algumas ocasiões, trazendo certas modificações.

A passagem das bandas pelo lugar-espaço-tempo do metal e a forma como os participantes do show as recebem contribuem para a efetivação das características visuais, comportamentais e ideológicas referentes ao metal que os afinados com esse estilo necessitam imortalizar, sob pena de verem seus laços identitários (des)simbolizados por um mercado que os apreende. Ou, no limite, sob pena de os verem desfeitos. É importante pensar que lugar-espaço-tempo nos shows de metal são representações simbólicas que estabelecem intrínseca relação com as atividades que ordenam esses eventos, ou seja, a demarcação do lugar, a ocupação do mesmo por um grupo específico (espaço) e a efetivação das referidas atividades que os constituem (o tempo) indicam a realização de um acontecimento de metal. Evento que, por sua vez, faz referência, no presente, a outros, vivenciados no passado e que são reelaborados e resignificados nos shows.

Além disso, as apresentações de metal são as expressões máximas do caráter "estrangeirista" do rock que, ao mesmo tempo em que invoca valores "de fora" (concebidos como internacionais), adapta-se e funde-se àqueles "de dentro" (nacional, regional, local). E transforma as apresentações de metal outrora virtuais em reais, observadas nas letras das músicas e na linguagem visual expressa nas estampas das camisas, nos símbolos, na estrutura física e sonora compatível aos decibéis emitidos pelas caixas de som e nas gestualidades que unificam a gramática do metal.

O importante é que o show aconteça e, onde quer que ele ocorra, seja num anfiteatro, na via pública ou no teatro, o som ecoe no mais alto volume. Que os pescoços se contorçam, as cabeças "batam", os cabelos longos (para quem os tem) voem e "captem" as ondas sonoras que não apenas estremecem os corpos dos presentes, mas, acima de tudo, "chocam" e tornam visíveis para as estruturas físicas, sonoras e sociais da cidade, que a partir das minhas observações em campo anunciam que outra cidade - viva, pulsante e oxigenada pelo "sangue" de cor preta - performatiza suas ações no lugar-espaço-tempo onde ocorrem os shows de metal.

Roupas e adereços

Na plateia, as pessoas trajam jaquetas de couro, capas pretas, calças spandex ou couro, blusas estampadas em cinza e preto, camisas de bandas como Iron Maiden, Sepultura, AC/DC, Guns N´ Roses, Shaaman. Em sua grande maioria, os frequentadores usam adereços de metal no pescoço, lenços na cabeça alusivos a bandas ou bandeiras nacionais como a da Inglaterra. Alguns homens usam saias, longos vestidos pretos por cima da calça e da camisa, maquiagem preta no rosto (aludindo a cruzes invertidas), calçam tênis ou coturnos pretos. Já as mulheres, acentuam os cílios, contornos dos olhos e lábios com as cores marrom ou preta, utilizam vestidos pretos longos, combinando com botas, ou calça/saia jeans em combinação com o tênis.

Quando os participantes dos shows de metal se deslocam em direção aos mesmos, não apenas caminham; acima de tudo, trazem impressos nos gestos, vestimentas, sentimentos e emoções o jeito próprio de falar, as características das vivências de cada bairro, as experiências vivenciadas nas esferas pessoal, musical e em grupo. Dessa forma, o que os participantes carregam em si e expressam para o "outro" possui intrínseca relação com o conjunto de ideias e valores que orientam suas condutas.

Além do corpo, da estrutura física e do comportamento da plateia nos shows de metal, devem-se mencionar os cheiros que exalam no ambiente. Refiro-me ao cheiro que cada indivíduo traz impresso na pele e que é potencializado mediante os gestos viscerais que a música proporciona. Inclui-se, também, o cheiro da bebida, eventualmente do cigarro e dos psicotrópicos que não são exclusivos do rock. É preciso relativizar o rock como estilo musical que não possui relação direta com as drogas. Ele se situa para além da música, das drogas e do sexo, porque transcende as experiências individuais, alocando-se nas experiências coletivas de onde são retirados os significados, as classificações e as hierarquizações que configuram a gramática do rock metal.

Os eventos de metal podem significar, para os frequentadores, o motivo para sair da rotina escola-casa-escola. O momento de diversão, de festa. O lugar onde se fazem e se encontram amigos. As apresentações musicais proporcionam, conforme me relatou um frequentador, "muita emoção". "Escutar Metal é muito emocionante, porque é um tipo de som que eles fazem com os instrumentos que ninguém consegue fazer", conclui. Além das emoções e das experiências que os shows proporcionam para a plateia, eles representam para as bandas muito mais que o marcar presença ou uma reafirmação do pacto estabelecido consigo no que diz respeito a ser "metaleiro". Seja participando como plateia ou como banda, os eventos de metal não podem ser compreendidos por si mesmos. Explicam-se muito mais por aquilo que eles proporcionam para cada indivíduo que os frequenta.

Ao longo dos shows, há os intervalos que, entre outros desempenhos, permitem a recomposição das energias liberadas a cada apresentação para serem armazenadas e extravasadas tão logo recomece a execução do som. É interessante notar que alguns frequentadores aproveitam esses intervalos para fazer uma visita à chamada "banquinha" onde estão expostos os materiais produzidos pelas bandas. Os materiais expostos para serem adquiridos pelos frequentadores não estão exclusivamente ligados aos grupos musicais que não possuem contratos com gravadoras. Percebem-se ali desde o DVD produzido por bandas, como, por exemplo, a finlandesa Children Of Bodom, até os CDs-demo produzidos por bandas locais.

Mainstream e underground

A articulação entre o local e os produtos oriundos de outras partes do mundo dinamiza a relação de consumo e trocas que se dá entre o mainstream e o underground. Em outras palavras, os bens culturais difundidos pelos conglomerados midiáticos são consumidos lado a lado daqueles bens cuja opção de produção, divulgação e consumo não se dá de acordo com as regras de investimento e obtenção de lucro, sugeridas pelo modo de produção capitalista.

Os contornos aqui envolvem a produção de músicas sonoramente menos polidas que as apresentadas pelos conglomerados midiáticos, as trocas de CDs, cassetes, vinis, fotos, flyers, fanzines, endereços eletrônicos, downloads pela internet, roupas, adereços, gestos, aparição em programas de TVs, reportagens em jornais impressos, revistas, livros, equipamentos musicais, shows, palestras, workshops e gente. Forma-se, assim, uma rede de relações que viabilizam os fluxos desses bens produzidos pelos "metaleiros".

Por isso, após essa parada nos shows a fim de conferir as tendências do metal, os frequentadores retomam seus lugares na plateia assim que escutam o recomeço do som no palco. Os finais das apresentações, como dos próprios eventos, dão-se após os agradecimentos da banda e o anúncio de que a última música será executada. A plateia começa a se dispersar lentamente, aos pares ou em grupos, pelos portões por onde haviam entrado.

Dentro dessa perspectiva, ao final dos eventos, o show e as experiências vivenciadas não apenas motivam o acontecimento de outros eventos. Além disso, os motivam porque permitem aos participantes liberarem-se de si mesmos e exercem função catártica. Tomando por empréstimo as palavras do psicólogo americano James Hillman, isso é possível porque "sentir e imaginar o mundo não se separam na reação estética do coração. O coração percebe tanto sentindo como imaginando: para sentir penetrantemente devemos imaginar e, para imaginar com precisão, devemos sentir".



ABDA MEDEIROS*
ESPECIAL PARA O CADERNO 3

* Socióloga, autora da dissertação "Cosmologias do Rock em Fortaleza. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFC, com pesquisas financiadas pelo CNPq na área de Antropologia

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