quinta-feira, 4 de junho de 2009

Carlos Magno

O que representou e quais eram os interesses do Papa com a coroação de Carlos Magno em 800?
“A raça dos merovíngios, na qual os francos tinham por hábito escolher os seus reis, passa por ter durado até o rei Childerico [Childerico III, 742-751] que foi, por ordem do pontífice romano Estêvão [Estêvão II ou III, de acordo com outras listagens, 752-757], deposto, barbeado e lançado num convento. Se bem que a possamos considerar terminando apenas com este príncipe, no entanto estava já, havia muito, sem qualquer força e não oferecia em si nada de ilustre, a não ser o título de rei. Porque os meios e o poder do governo estavam entre as mãos dos prefeitos do palácio, a quem chamavam mordomos e a quem pertencia a administração suprema” [EGINHARD, Vita Karoli Imperatoris, data anterior a 821].
Este excerto, escrito pelo monge Eginhard (c. 755-840) em sua biografia de Carlos Magno, mostra a decadência dos últimos monarcas merovíngios e a ascensão de uma nova dinastia, denominada carolíngia em referência ao seu mais ilustre membro, cuja origem remonta aos antigos prefeitos do palácio. Em 754, o bispo de Roma (“papa”) legitima a transição dinástica sagrando Pepino III, “o Breve”, Rei dos Francos. Por sua vez, o novo rei doa as terras do que viria a ser os Estados Pontifícios, a famosa Doação de Pepino, confirmada posteriormente por seu filho, Carlos. Em 771, Carlos Magno passa a reinar sozinho quando da morte de seu irmão Carlomano. Segue-se então um processo de expansão territorial com a submissão de vários povos conquistados que se convertem à fé cristã, como, por exemplo, os ávaros em 795 (Eginhard os confunde com os hunos na Vita Karoli). Surge assim uma nova unidade em boa parte da Europa Ocidental sob domínio do Reino Franco do carolíngio. Uma de suas vitórias mais importantes talvez seja a de 774, contra os lombardos, no norte da península Itálica, pois estes eram adeptos da heresia ariana e grandes inimigos do papa, que há muito tentavam conquistar Roma. Sob ameaça do rei Desidério, o papa Adriano I pede auxílio a Carlos Magno, que derrota o monarca lombardo em Junho de 774, fazendo-o prisioneiro. Desta maneira, o rei franco cinge mais uma coroa à sua fronte, a Coroa de Ferro da Lombardia – usada pela última vez mil anos depois, por Napoleão Bonaparte, quando este se dignifica como novo rei da Itália, em 1805. “Carlos protege, pois, o Papa por veneração por São Pedro, mas não se subordina a ele, como Pepino” [PIRENNE, Henri. 1970, p. 205]. No entanto, devido a várias divergências entre a Igreja Romana e o Império Bizantino, como a Questão Iconoclasta, que impediu Constantinopla de socorrer o Exarcado de Ravena durante a invasão lombarda, o papa passa a considerar fazer de Carlos Magno seu Campeão. Jacques Le Goff mostra que era vantajoso para o papa Leão III coroar o franco, pois assim teria a sua influência restaurada pelo poder inquestionável do novo Rei dos Romanos. Em contrapartida, Carlos confirmaria a autoridade eclesiástica papal e seu poder temporal no “Patrimônio de São Pedro”. De certo modo, Leão III pretendia fazer Carlos Magno o imperador de todo Mundo Cristão, o que levaria o estabelecimento da supremacia do pontífice romano sobre toda a Igreja [Cf.: LE GOFF, Jacques. 1983, pp. 69-70].Mesmo em Roma, o Papa, embora não negue a soberania do Imperador de Bizâncio, escapa-lhe de fato. Como não lhe ocorreria a idéia, ao reconhecer o poder e o prestígio de que goza o Rei dos Francos de reconstituir, em proveito de Carlos, o Império, que depois do Século V não tem titular? No que pensa, aliás, não é evidentemente em refazer o Império in partibus Occidentis e dar, se assim podemos dizer, um sucessor a Rômulo Augústulo. [...]. Não é a Roma Imperial, mas a Roma de São Pedro, que o Papa quer exaltar reconstituindo o Império, a cabeça da ecclesia, desta ecclesia de que Carlos se proclama soldado. [PIRENNE, p. 206].
No Natal do ano 800, Carlos Magno foi então coroado pelo papa – Imperador dos Romanos. Muito se discute se ele sabia ou não sobre o evento da coroação. Mário Curtis Giordani aponta pelo menos cinco versões sobre o fato, escritas ainda na época do carolíngio. Duas fontes citam a ignorância de Carlos Magno a sua elevação a imperador: os Annales Maximiani, de 811, e a Vita Karoli, de Eginhard – este último conta que o monarca ficou muito descontente com o ocorrido. Essas fontes não podem ser tomadas ao pé da letra, pois foram escritas alguns anos após o Natal de 800 e não batem com as informações prestadas pouco depois dos acontecimentos por Richbod, bispo de Trier e abade de Lorsch. Giordani segue a teoria de Paul Koschaker, que sugere que a suposta surpresa de Carlos Magno foi narrada desta maneira por “razões diplomáticas”, atribuindo a responsabilidade da coroação ao papa e não sua, para satisfazer os bizantinos. Mesmo um estudo da personalidade do imperador mostra que ele tinha temperamento forte e, se não fosse da sua vontade ser coroado, muito provavelmente não teria aceitado [Cf.: GIORDANI, Mário Curtis. 1970, p. 196]. Portanto, a tese do desconhecimento de Carlos Magno deve ser desconsiderada. Além do mais, os dois lados – imperador e papa – tinham a ganhar com a elevação: “o patrício que protegia Roma tornava-se o Imperador que protege a Igreja” [PIRENNE, p. 207].O que representou esta nova configuração de Carlos como imperador dos Romanos? Primeiro, uma Restauratio Imperii, pois “o poder que recebeu faz dele não um Imperador, mas o Imperador da ecclesia tal como a concebe o Papa, da Igreja Romana no sentido de Igreja Universal” [Idem]. Carlos Magno não pretende ser apenas imperador dos romanos, e sim imperador de todos os cristãos. Por isso precisa-se também de uma Translatio Imperii a Græci ad Francos, pois se afirmava que os bizantinos perderam a dignidade imperial quando a basilissa Irene manda cegar seu filho Contantino VI. Os Annales Laurenhamenses (Anais de Lorsch, do início do Século IX) mostram uma especial preocupação em justificar o que poderia parecer uma usurpação do título e das funções do basileus de Constantinopla, pois lá não havia um Imperador, e sim a impopular imperatriz Irene. Sugeriu-se até o casamento dela com Carlos Magno, pois ambos eram viúvos. Sem falar que havia a lenda que aquele que detém a urbs (Roma) detém o orbis (Mundo), e também o célebre axioma lembrado por Alcuíno em carta ao arcebispo de Salzburgo: Prima sedes non judicatur a quoquam (A primeira sede não é julgada por ninguém) [GIORDANI, p. 190]. Logicamente, Constantinopla não aceitou as
decisões de Roma. “Um único cronista bizantino mencionou o acontecimento da noite de Natal de 800 e qualifica-o de ridículo” [Ibidem, p. 198]. As relações de Carlos Magno com o Império Bizantino endureceram, mas, por fim, em 812, chegaram a um acordo: o basileus Miguel reconhecia o título de imperador do carolíngio em troca da Dalmácia e de Veneza. Contudo, a unidade territorial do Império Carolíngio não tardou a acabar com a série de divisões empreendidas pelos seus descendentes, mas as realizações de Carlos Magno não foram em vão. E se hoje, doze séculos depois, o processo de unificação econômica e política européia parece ser uma realidade, isso apenas demonstra um desdobramento do conceito de Império, que se mantém vivo mais do que nunca.

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